Entre a ABNT e o desenho animado: o patriarcado e a mãe universitária

São 19h16 da noite. Horário de verão. Calor absurdo.
Hoje é minha folga; trabalho de terça à domingo. Separei tudo o que precisava, organizei para fazer os últimos trabalhos do período. De manhã, levei o Gael à creche, participei da reunião de pais e mestres e acompanhei as últimas datas para fechar o calendário escolar - já ansiosa, pensando no desfralde que eu ia ter que tirar do papel de qualquer jeito nas férias. Passei o resto do dia arrumando os livros e acabei por deitar um pouco. O Gael tinha acordado com febre no meio da madrugada e me fez perder o sono por várias horas, eu estava realmente muito cansada. Quando me organizei para começar o trabalho, já estava na hora de buscá-lo na creche novamente. Voltamos para a casa e desde então estou tentando escrever uma prova. Quando finalmente consegui ler um parágrafo decentemente, acabei por desistir. Meu cansaço mental já não me permitia mais ler uma letra. Eu estava esgotada, há mais de duas horas com uma criança berrando, chorando, pedindo e voltando a berrar, querendo uma atenção que eu não podia dar (e ela não entendia, claro). Quando Gael finalmente sentou e buscou algo pra fazer, eu não sabia nem mais que trabalho estava fazendo. E nesse momento, estou escrevendo com ele de ponta a cabeça, dando pequenas porradinhas na tela com o pé. 

Esse é mais um dos tantos outros dias que vivo desde que Gael nasceu, no meu terceiro período do curso de História da UERJ, uma universidade pública de excelência no Rio de Janeiro. Ele ilustra 3 anos de muita luta e resistência por uma pauta que é pouco vista e quase nunca lembrada: a mãe universitária.

Nasci na geração em que a mulher "pode ser o que quiser" - desde que não fira o orgulho e ego dos homens, claro. Pensando nisso, minha mãe me criou para fazer faculdade desde que me entendo por gente - e sempre foi um desejo expresso meu ser universitária. Quando finalmente realizei esse sonho (meu e dela), engravidei no segundo período. A primeira coisa que ouvi foi que eu não poderia parar de estudar. Nem trancar, nem nada. Ou estudava ou era rua, com criança e tudo.
Pensei que seria mais tranquilo estudar do que trabalhar enquanto mãe. Tomei uma rasteira logo na licença maternidade: com um mês de resguardo, uma professora me fez ir até a faculdade com um bebê no colo, para me entregar uma única folha de oficio que ela poderia ter me entregue por email, já que estávamos nos comunicando dessa forma. Não satisfeita, ela queria que eu (com uma criança de colo de um mês, de resguardo de uma cesariana) levantasse para que ela sentasse. Entrei em choque, mas não me desesperei. Dava pra fazer, quem disse que não?

Com apenas quatro meses de vida, Gael foi para a creche. Eu precisava voltar para a faculdade. De repente, uma porrada que eu não esperava. Uma enxurrada de matérias e textos pesados, regado à leite empedrado vazando nos seios, uma criança chorando que eu tinha pavor de entrar na faculdade e dificuldade de ler qualquer texto por mais de cinco minutos sem ouvir um choro de fome, dor ou sono, quando não era nenhum desses e eu fazia loteria para advinhar.
Dia 5 da campanha "30 dias de empatia materna", lançado pelo Uma Mãe Feminista.

Reação de vacina. Febre de 40 ºC, mas e minha resenha? Tinha que entregar até o dia seguinte. Mandei email. "Karoline, não podemos mais abonar suas faltas, sua licença acabou no quarto mês". Chegava atrasada porque a creche só abria às 8h - e a aula começava 7h30. Entrei em desespero. Mas por que estava reclamando? Eu, uma privilegiada por estar na faculdade, tendo a mordomia de ter uma creche que me dava 5h de estudo, tomei bomba em todas as matérias daquele período.

Os períodos passavam. O Gael crescia, mas pouca coisa mudava. Fui reprovada por falta por um professor, porque sempre que ele fazia chamada - 30 minutos antes do fim da aula - eu precisava sair, pois tinha que estar na porta da creche 13h. Expliquei a situação, recebi aval para sair mais cedo, fiz todos os trabalhos, uma prova final de oito páginas: o professor me reprovou por falta sem olhar meu extenso trabalho de uma noite inteira. 


 Mendiguei muitos décimos em nome do meu filho. Eu não podia levar o Gael para dentro da sala de aula, não com ele gritando como uma maritaca e me fazendo ficar constrangida. Cansei de contar as vezes que carreguei meu filho no colo, e parei na porta da sala, sem ter coragem de entrar. Brinquei com ele no corredor. Ouvia as chopadas e confraternizações acontecendo à poucos metros de distância enquanto carregava ele nos braços, correndo para chegar em casa à tempo de não chover. Quantas vezes, nessas corridas atrapalhadas, pensava se o pai dele não estava rindo e bebendo em uma das rodinhas dos estudantes... 

Sétimo período, já estava federada nas dificuldades. Comecei os estudos muito empolgada, no ritmo de todo mundo que sente que tá perto de concluir a graduação. Peguei uma eletiva com uma professora muito elogiada. De fato me apaixonei pelo tema, mas ainda era puxado chegar na hora com um horário da creche tão apertado ao meu de aula. Expliquei que muitas vezes eu chegava atrasada por isso, se não haveria alguma forma de tolerar esses atrasos que muitas vezes se configuravam em falta. Recebi como resposta que era desigual tolerar os meus atrasos em detrimento do resto dos alunos e quando insisti... "Karoline, por que você pegou essa matéria?" 

Pensei várias vezes nessa pergunta. Por que eu peguei aquela matéria? Parecia uma pergunta boba, mas fiquei refletindo no que ela significava pra mim. Por que eu peguei aquela matéria? Por que eu, mãe solo, universitária, que não tem dinheiro pra contratar uma babá e depende de transporte público, OUSEI me matricular numa disciplina que me interessou, APENAS POR INTERESSE? Como eu me atrevia?

Foi então que percebi: eu era uma atrevida! Me atrevia e desafiava um sistema universitário que me odeia o tempo inteiro. Me odeia, sim, porque a universidade não quer mulheres mães. A universidade quer mulheres que se graduem, se casem e aí então tenham filhos. Mas elas que não ousem entrar no mercado de trabalho, não! Mulheres mães são prejuízo para a empresa. Engravida, dá trabalho, e se o filho ficar doente?
Se quiserem, elas podem optar pelo lado mais fácil: não se graduarem em universidade nenhuma e ficarem em casa, cuidando dos filhos e do seu santo papel de mãe. Mas na universidade, não. A universidade não tem espaço para mães, muito menos para seus filhos. Até porque, a universidade foi feita para quem não procria: homens.

Segundo a ANUUFEI (Associação das Unidades Universitárias Federais de Educação Infantil)
, existiam em 2013 (coincidentemente, o ano em que ingressei na universidade), apenas 17 creches universitárias em todo o Brasil. A luta pela creche universitária nos campus brasileiros é árdua, mas ainda caminha à passos bem mínimos.  Somente em 2014 foi aprovado, na Uerj, um documento que viabilize o planejamento de uma creche universitária - apenas seu planejamento.

Eu com Gael no colo, num ato feminista pela Creche Universitária na UERJ, no fim de 2014

 A educação já nunca foi feita para mulheres. Para mulheres que têm a audácia de ser mães e não apenas mães, pior ainda. O meio universitário não é nosso. Não é feito para nós, nem sei se um dia será. Mas sei que luto por sobrevivência e por um sonho. O sonho de que o patriarcado não me obrigue a desistir da academia por um filho. De que eu não tenha que trocar o desenho animado pela ABNT, que eu não precise escolher! Que eu possa ter o direito de fazer o que eu quiser, sem as regras do jogo decidirem se aquilo é feito para a minha condição de mãe ou não.

Mãe e universitária persisto, resistindo. Até quando a saúde mental aguentar.
Mas não persisto só. Persisto por todas as mães estudantes, do ensino fundamental ao doutorado, que se torturam na cruel escolha entre ter uma carreira e ter uma família. Por todas aquelas que marcam seus textos enquanto amornam a mamadeira, que delimitam suas disciplinas no horário das creches e que lutam por uma formação melhor.

Para nós, toda a luta e força do mundo.
Para as instituições que nos impedem... Não somos o Zagallo. Mas vão ter que nos engolir!


Em pesquisa feita na página Uma Mãe Feminista, 361 mulheres responderam sobre sua vida acadêmica. 
71, 1 % alegaram ter engravidado no meio de seus estudos. Dentre elas, 16, 1% engravidaram no Ensino Médio. 43,5% , no Ensino Superior.
53, 6% de mães responderam que foi difícil prestar o vestibular.
80, 4% sentem dificuldade de manter os estudos por causa dos filhos.
50, 4% não conseguem estudar em casa, por conta dos filhos. Mais de 53% não dispõem de locais tranquilos para estudar sem seres perturbadas. 
41, 1% sentem que a escola ou universidade inviabiliza seus estudos. 45, 2% não se sentem à vontade para assistir aula junto aos seus filhos.
25, 8% alegam que não tem como manter seus filhos e a universidade ao mesmo tempo. 
22, 3% sentem que a universidade não é lugar para elas.
32, 4% disseram que o(s) pai(s) do(s) seu(s) filho(s) já concluíram os estudos. 36, 4% acreditam que o(s) pai(s) não sintam nenhum impacto dos filhos nos seus estudos.

PS: Esse texto foi interrompido inúmeras vezes pelo meu filho. Só consegui concluí-lo duas horas depois.
 

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