"O homem nu" e a cultura de dois gumes


Nesta quinta-feira, 28, meu feed de notícias foi bombardeado com algumas reportagens a respeito da exposição da 5ª Mostra Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. 
Confesso que, de pronto, eu fiquei meio chocada, porque rente aos links das reportagens, vinham palavras de revolta, protesto e indignação. Minha cabeça ficou completamente confusa e eu percebi que não ia conseguir entender aquilo naquele momento. Deixei pro dia seguinte. 


PRA QUÊ?

Quando abri os links, me arrependi de ter lido. Mas me permiti retornar um olhar atento a elas mais uma vez, porque depois que soube do que se tratava, eu vi que precisava escrever sobre isso.


Mãe e filha tocam em homem nu na perfomance "La Bête", no MAM.

A performance "La Bête" consistia, pelo vídeo e fotos, que as pessoas - inclusive crianças - tocassem no corpo de um homem nu. Na foto ao lado, vemos mãe e filha tocando os pés deste homem. Em diversas outras fotos que vi, existiam crianças - numa delas, todas meninas - ao lado dele (ainda nu), sorrindo e tirando fotos.




Segundo o site oficial do evento, eis um trecho do resumo do que o evento se propunha a ser:

"Reunir em uma exposição, que se pretende um Panorama da Arte Brasileira, desde a concretude da intervenção arquitetônica até a fluidez da dança, passando pelo audiovisual, pela escultura, pela fotografia e pela palavra, mais que explicitar a diversidade da cena contemporânea, em que a divisão de meios expressivos e de disciplinas parece obsoleta, busca ressaltar a multiplicidade de tempos que compõem nosso momento histórico. O tempo do corpo que dança, da palavra escrita e da imagem projetada respondem a formas de percepção e de experiência plurais. Simultaneamente, é parte de nosso desafio articular os diferentes imaginários que se contaminam e se multiplicam no Brasil entre a cidade e a floresta, as comunidades periféricas e os centros cosmopolitas, entre o caos, a indeterminação e o mito."




Eu sou uma grande admiradora da arte, e para mim, o trecho se resume a um desafio muito bacana proposto e que deveria ser exposto sempre. As diversas formas de arte, o corpo, a dança, as diferenças entre o imaginário das comunidades periféricas e os centros cosmopolitas... Muito OK. Mas, na minha visão leiga de não-artista, não sei como crianças tocando um homem-nu se encaixam nesta visão. 
Compartilho da opinião de que a nudez artística é super válida em muitos casos; sou favorável a expressão livre do corpo e os cortes puritanos e moralistas em que a sociedade os envolve - principalmente o corpo feminino. Mas quando escrevo aqui, falo como mãe. Uma mãe de uma criança de 3 anos, que sempre ensina seu filho a não tocar no corpo de ninguém sem a devida permissão, que as partes "íntimas" se chamam assim porque dizem respeito à intimidade daquela pessoa, e que como ele deve respeitar a intimidade o corpo alheio, não deve deixar que ninguém toque no dele. Isso não é simplesmente educação: é também uma defesa (embora bem ínfima, frente ao perigo) contra a cultura da pedofilia. E é bem revoltante ver, de repente, todo o seu trabalho ser jogado fora por uma exposição de arte que diz que seu filho pode SIM, tocar e mexer à vontade no corpo de outra pessoa, alterar sua disposição e encostar em suas partes íntimas.


A mente da criança, até certa faixa etária, é extremamente associativa.
Se uma criança toca livremente no corpo nu de um homem, ela vai achar que pode livremente tocar no corpo de qualquer pessoa. 
Parece antiquado, ou valores morais atrasados, história da vovó, etc. Mas é simplesmente o sistema cognitivo de uma criança.
Logo, se uma instituição cultural com o peso do MAM encara um homem nu sendo tocado por menores de idade como algo natural, segundo a nudez artística, o que eu, mãe, posso falar se receber um bilhetinho na agenda dizendo que meu filho tocou na vagina ou no pênis do/da coleguinha?

Ele provavelmente vai me responder: "Mas no museu pode, mamãe."

E pra onde vai o que eu ensino? 

O MAM, em sua nota de esclarecimento pela página no Facebook, se explicou da maneira que pôde. Entre a explicação, dizia a instituição:

"O MAM reitera que a apresentação não tem conteúdo erótico e que a sinalização indicativa da nudez na performance está claramente visível para orientação do público"

De fato, para um adulto, é nitidamente visível.
Mas para se fazer visível à uma criança o conceito de nudez artística e erótico, algo não encaixa nessa exposição. O mínimo desejável seria a aplicação de faixa etária apropriada para a performance. 

A grande verdade é que vivemos entre um grande limiar entre a cultura artística e a cultura midiática e social do estupro, da pedofilia, do patriarcado. Eu, como mãe, tento todos os dias ensinar ao meu filho que tocar no corpo do outro é errado, que ele não pode ser tocado por qualquer pessoa, que o rosa e azul são apenas cores, que as meninas tem que ser respeitadas tanto quanto ele, pois são tão capazes e tão crianças quanto ele. E a todo o tempo somos bombardeados com as informações contrárias pela mídia e sociedade: rosa é de menina, azul é de menino; se ele maltrata a coleguinha menina, bate, empurra e puxa o cabelo, é porque tá gostando dela; que ele pode alisar a coleguinha sim, porque "isso é coisa de menino", e que se quiserem tocar nele tudo bem, porque isso é sinal de que ele é bonito. 

A cultura artística sempre serviu, historicamente, para combater o senso comum e os preconceitos que a mídia e a sociedade tentam nos empurrar goela abaixo. E é triste ver a mesma cultura que sempre serviu se vanguarda para as ideias de liberdade, perpetuar a cultura da pedofilia e do estupro numa exposição de arte.

Existe uma linha tênue entre as duas culturas.
Tênue, porém bem visível.
Não me farei de cega a ela. 


Comentários

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    1. Olá, querida.
      Você não precisa se desculpar, de forma alguma. Pelo contrário.
      Fico muito feliz que você tenha se sentido à vontade para falar sobre, e acredite, pra qualquer apoio que você precisar, o blog está aqui para você desabafar.
      Muito obrigada pela sua contribuição acerca do tema, eu vejo o quanto é importante falarmos sobre isso.
      E parabéns pela artista que você se tornou!

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    2. Obrigada por ler. Estou apenas com medo de minha família ver isso... É muito complicado, queria contribuir e desabafar, mas nunca estou segura de vdd... Se puder, exclua ele... Obrigada por tudo

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